domingo, 19 de janeiro de 2020

2001- Uma odisseia no espaço

                                                              

Resenha 
Livro: 2001- Uma odisseia no espaço 
Autor: Arthur C. Clarke 

    Clássico da ficção científica, tendo influenciado variadas produções cinematográficas e literárias ao longo dos anos, a obra 2001- Uma odisseia no espaço foi adaptada para os cinemas, com a direção de Stanley Kubrick. O roteiro do filme e o livro foram escritos ao mesmo momento. De certa maneira, são obras complementares. É interessante ler o livro e assistir o filme também, para uma experiência completa. 

A obra fala, de maneira geral, sobre a humanidade. Começa com os ancestrais dos seres humanos, chamados de homens-macaco. Esses seres viviam um dia de cada vez. Sem nenhum tipo de tecnologia, estavam ao bel prazer da natureza. Eram dominados por ela, tendo que fugir de predadores, se virar para comer, se proteger da fome, do frio. Em um determinado momento, chega no local onde esses seres vivem um objeto retangular, preto e grande. É o famoso monólito. O monólito é visto com muita curiosidade pelos homens-macaco. Ele se comunica com eles, fazendo uma espécie de seleção-natural. A partir desse encontro inesperado, os homens-macaco começam a produzir ferramentas que os levam a , em certa medida, dominar a natureza de forma que não faziam anteriormente.  

Depois, o tempo avança ate o ano de 1999. Nesse fim de milênio, temos a humanidade na era de ouro da exploração espacial. Os seres humanos sendo capazes de visitar a lua, fazer expedições para planetas distantes, verificar vida extraterrestre. Um doutor é chamado na lua para verificar a ocorrência de um objeto estranho: nada mais nada menos que o nosso já conhecido monólito. Foi enterrado em uma cratera lunar há mais de 3 milhões de ano, tendo sido redescoberto naquele momento.  

A terceira parte do livro narra as aventuras de uma tripulação a bordo de uma nave super  inteligente chamado HAL 9000, dois anos após a descoberta do monólito . O destino da missão é Saturno e a verificação de vida inteligente fora da terra. Apenas o computador sabe esse segredo e fará de tudo para manter essa missão a salvo. É interessante notar que toda vez em que há algum tipo de avanço tecnológico na humanidade, o monólito esta lá espreitando, observando e selecionando. 

Na minha concepção, o autor usa todo esse contexto para discutir uma questão existencial: de onde viemos e para onde vamos? Qual o destino dos seres humanos, da humanidade. A história começa quando os nossos ancestrais ainda não sabiam falar, nem utilizar ferramentas, produzir tecnologia de maneira geral. De certa forma, o monólito age como mecanismo de seleção natural, fazendo sobreviver aqueles mais fortes, mais ágeis, mais adaptados e inteligentes, que seriam capazes de produzir artigos necessários para nossa evolução como espécie. Éramos dominados pela natureza e a partir da intervenção do monólito, passamos a dominá-la.  

Depois, o ser humano já domina completamente a natureza e sai em busca de explorar e dominar outros universos, planetas e galáxias. Ou seja, como diz no livro, sendo senhores do mundo, o que faremos em seguida? Lança uma reflexão acerca da nossa necessidade de exploração e busca do conhecimento.  

Outra questão importante a ser discutida no livro é o que nos torna humanos. Os nossos ancestrais que não possuíam linguagem, mas começaram a produzir tecnologia, podiam ser considerados seres humanos? O computador superinteligente HAL 9000 construído à imagem e semelhança dos seres humanos, dotado de dúvidas e anseios, poderia ser considerado ser humano? São as dúvidas, a capacidade de comunicação, a tecnologia, os sentimentos, desejos.. O que nos une como espécie? Termino essa resenha com a frase final do livro, a fim de fazermos uma reflexão: 


Depois esperou, ordenou os pensamentos, e Meditou sobre os seus poderes ainda por testar. Pois embora fosse senhor do mundo, não sabia bem o que fazer a seguir. Mas acabaria por descobrir alguma coisa.” 


domingo, 29 de dezembro de 2019

A mãe, a filha e o espírito da santa



RResenha

Livro: A mãe, a filha e o espírito da santa
Autor: P. J. Pereira
Ano:2017
Nº de páginas: 496
Editora: Planeta

P. J. Pereira, autor da trilogia Deuses de dois mundos, lança mais uma obra prima da literatura nacional. Me interessei pelo livro logo que li seu título. Quando fui buscar saber mais sobre a história, fiquei completamente apaixonada. Procurei bastante e consegui adquiri-lo em uma promoção de uma livraria.

O livro conta a história do novo messias, ou melhor, nova, Pilar da Anunciação. Nascida no Maranhão, na cidade de Codó, filha de Maria e três anjos, em meio a uma família praticante do terecô, religião oriunda do Maranhão, que mistura preceitos da Encantaria e Umbanda.

A obra é dividida em três partes, homônimas das do título. A parte I, intitulada A mãe, conta a história da concepção de Pilar e um pouco da vida de sua mãe Maria, ao mesmo tempo que narra os primeiros períodos da infância da nossa messias. A segunda parte, A filha, narra a adolescência e primeira fase adulta de Pilar, enquanto a parte III, O espírito da santa, aborda especificamente a atuação de Pilar como líder religiosa. Tudo isso embalado à uma trilha sonora escrita pelo próprio autor.

O livro trata, na minha opinião, sobre preconceitos. De todos os tipos possíveis. Ao longo do enredo, podemos perceber o preconceito da cidadezinha de Codó em relação à Pilar, pelo fato dela ser menina e escolhida Messias; podemos observar o preconceito da sociedade em relação aos praticantes de religiões de matriz africana; o preconceito , novamente, das pessoas, quando são abordadas ao longo do livro relações homossexuais.

Existem cenas muito fortes, de abuso, violência, estupro, que podem impressionar os mais sensíveis. Mas são cenas necessárias para a construção da trama. Tem muitas cenas de sexo também, mas mostrando que o sexo é uma atividade normal da vida, assim como comer ou dormir.

O que me deixou mais impressionada foi a construção de todos os personagens: parecem tirados de algum filme, ou série, ou mesmo da vida real, tamanha a verossimilhança. Pilar , sobretudo. Ela é retratada como uma líder humana, que tem partes boas e ruins, que vão se alternando ao longo do tempo. É necessário que estejamos livres de todo pudor para conseguir acompanhar as tramoias que ela se mete. Por vezes amada, outras odiada, mas, humana. As descrições dos cheiros, gostos, sentimentos são meticulosas, detalhadas e novamente, cinematográficas. O tempo inteiro imaginei uma adaptação para as telinhas ou telonas da obra.

Respira-se Brasil ao longo de todo o livro. O autor, neto de nordestinos, escreveu o livro utilizando gírias da região, o que causa uma maior imersão na história. Parece que estamos ouvindo a conversa da boca dos personagens. Pude conhecer mais sobre as diversas manifestações religiosas do nosso país e que não fazia a mínima ideia. Além de poder conhecer melhor três locais: Maranhão, Brasília e São Paulo, que são os espaços onde se desenrola a trama. Como a história atravessa as décadas de 60,70,80 e 90, podemos sentir a inserção do tempo através de sutilezas: a perseguição aos comunistas (qualquer um que discordasse do governo ou lesse livros proibidos) na ditadura é um exemplo de marca da temporalidade.

O próprio autor conta que escreveu a história inspirado em casos de abuso religioso ao redor do mundo. Vários profetas da fé se aproveitam da boa vontade alheia, para infligir sofrimentos os mais variados possíveis e isso fica muito bem retratado no livro: pessoas perdem empregos, casamentos, filhos, amigos, por se isolar em uma religião que não permite contato com pessoas “de fora”.É um livro riquíssimo culturalmente e esse caldo só poderia ter sido proporcionado por um autor brasileiro de qualidade como P. J. Pereira. Recomendo fortemente a leitura.


domingo, 8 de dezembro de 2019

Ponciá Vicêncio


Resenha
Livro: Ponciá Vicêncio
Autora: Conceição Evaristo
Ano: 2017
Editora: Pallas
Número de páginas: 120

Conceição Evaristo, não escreve, faz “escrevivência”. Mulher negra, nascida na periferia de Minas Gerais, se formou adulta como professora de Escola Normal, e passou em um concurso para o magistério no Rio de Janeiro. É mestre em Literatura pela PUC e doutora pela Universidade Federal Fluminense. Disputou a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras, que perdeu para o jornalista Cacá Diegues. Sua campanha para a Academia foi impulsionada pela internet e teve amplo apoio popular. Apesar disso, não ocupou a cadeira, em uma Academia majoritariamente composta por homens brancos(atualmente há apenas um homem negro e cinco mulheres brancas contra trinta e três homens brancos na Academia). Autora de inúmeros contos e poesias, tem em Ponciá Vicêncio seu romance de estreia.

A obra narra a vida de Ponciá Vicêncio. Nascida em um quilombo, neta de um negro que foi escravizado, Ponciá cresceu no interior com sua família, pai, mãe e irmão. Não conheceu muito o avô, que morre quando ela era pequena, mas todas as pessoas afirmam que ela receberá um dia a herança dele. Ponciá e sua mãe, Maria Vicêncio, fazem objetos de barro para vender. Seu pai e irmão trabalham na terra dos brancos. Após a morte do pai, Ponciá decide se mudar e ir tentar a vida na cidade grande.

Ponciá leva uma vida difícil na cidade e vive mais nas suas memórias do que no momento presente. A história é narrada por um narrador em terceira pessoa, observador, e constituída de flashes, que não seguem uma ordem cronológica. 

É interessante notar que a história trabalha com as memórias, que podem ser encaradas como única e exclusivamente do ponto de vista individual como serem tratadas como a memória da história do povo negro. Quando é contado no livro que o sobrenome Vicêncio vem do coronel Vicêncio, que colocava seu sobrenome nos escravos, isso não diz respeito apenas à esse caso individual, mas reflete esse apagamento da história dos negros que foram escravizados. Ponciá tenta o tempo inteiro recuperar essa memória, perdida. Quando Ponciá relata que o pai e irmão continuam a trabalhar na terra dos brancos, mesmo o pai tendo sido de ventre livre, e não recebem salário, sendo as relações no quilombo de troca de materiais, isso diz muito sobre a condição do negro no Brasil pós abolição. Não houve uma libertação de fato com a assinatura da Lei Áurea e não igualdade ainda em nosso país entre negros e brancos, visto que os negros são mortos pelo braço armado do Estado, são os que ganham menos, acessam menos às Universidade. Apesar disso, o mito da democracia racial se faz presente. É interessante, ainda levando em consideração esse ponto, quando seu irmão Luandi chega na cidade e vê soldados negros, exclama: nunca vi negro ocupar posição de poder. Depois, com o tempo, ela vai desconstruindo essa visão de que o soldado ocupa alguma posição de superioridade , e descobre que ele é apenas mais um subalterno com uma ilusão.

O modo de contar a história me fez lembrar de outras escritoras negras, como Maria Firmino dos Reis e Carolina Maria de Jesus. Conceição tem na sua prosa, poesia. Dotada de lirismo que consegue transformar em beleza até mesmo o movimento da folha de uma árvore.

Dói no âmago , na alma, ler certas passagens que jogam em nossa cara as chagas do racismo pungente e institucional que insistem em fazer parte do cotidiano do Brasil, último país das Américas a abolir a Escravidão. As dores de uma mulher negra no seu cotidiano, tudo que ela tem de enfrentar para conseguir viver de maneira digna, evidenciam nossas injustiças diárias. É interessante destacar que apesar de Conceição ser uma autora pós moderna, ela também toca profundamente nas questões das desigualdades, das estruturas da sociedade, o que faz com que sua escrita seja dotada de originalidade. Depois de tudo isso, só consigo pensar que quem saiu perdendo a oportunidade de imortalizar uma escritora tão completa foi a Academia Brasileira de Letras. Azar o deles, sorte a nossa, pois ficamos conhecendo essa autora de qualidade inigualável. Recomendo fortemente a leitura!


domingo, 17 de novembro de 2019

Laranja Mecânica: um livro muito horrorshow!



Resenha
Livro: Laranja Mecânica
Autor: Anthony Burguess
Ano de lançamento: 1962
Número de páginas: 224
Editora: Aleph

Um livro muito horrorshow!

Um clássico da literatura mundial, Laranja Mecânica é um romance de formação que acompanha o amadurecimento de Alex, um garoto que vive numa Inglaterra futurista, membro de uma gangue que pratica atos de ultraviolência.

Narrado pelo próprio personagem principal, o livro é dividido em três partes: a primeira parte trata da vida de Alex com seus drugis (companheiros), descrevendo as noites da gangue que ele faz parte: tomar leite moloko, roubar, estuprar e abusar. Mostram também como era a sociedade no romance, dividida em classes, hierarquizada, com muitos pobres e muita violência. Esses atos ultraviolentos não são exclusividade da turma de Alex. Fica claro que é comum adolescentes cometerem esses delitos ao longo da narrativa. Os crimes são detalhados minunciosamente, o que pode acabar embrulhando o estômago de pessoas mais sensíveis. Numa dessas noites de crimes, Alex é traído por seus companheiros e acaba sendo preso, condenado à 14 anos de prisão. Ele tinha apenas 15 anos na época.

A segunda parte narra a vida de Alex na prisão. Ele não perde traços de seu comportamento violento, o que acaba fazendo com que ele se torne objeto de um experimento que prometia curá-lo da violência e deixa-lo livre da prisão em 15 dias. Ele aproveita a deixa para sair mais cedo da cadeia e participa do tratamento, chamado Ludovico. O tratamento consistia em assistir diariamente filmes ultraviolentos, após a administração de um remédio que fazia com que ele associasse as cenas com um enorme mal-estar, fazendo com que ele se sentisse a ponto de morrer toda vez que visse ou pensasse em atos de violência, ou até mesmo sexo.

A terceira parte narra a vida de Alex logo após ele deixar a prisão. Todo o livro utiliza-se de uma linguagem chamada Nadsat, inventada pelo autor, inspirada na linguagem dos jovens ingleses e russos da época em que ele escreveu o livro, com suas gírias e malemolência. Na versão que li há um glossário ao final do livro com o significado das palavras, mas recomendo não o olhar. A estranheza provocada pelo fato de não sabermos o significado das palavras é necessária para emergirmos na atmosfera do livro. Acredito que olhar o glossário deixaria tudo menos interessante.

O livro trabalha com a questão do livre-arbítrio, afinal Alex só começou a agir bem após passar por uma tortura e aborda a questão do Estado: ate onde pode ir o seu controle na vida das pessoas, nas suas vontades individuais? A certa altura do livro um capelão da prisão se questiona se um homem que não pode escolher ser bom é igual ou pior aquele que escolhe ser mau. Podemos perceber uma crítica forte ao behaviorismo, que é um conjunto de abordagens nascidas nos séculos XIX e XX que propõe o comportamento como objeto de estudo da psicologia. A terapia/tortura do livro me fez lembrar da época da faculdade quando estudei em Psicologia da Educação o método pavloviano que consiste em um condicionamento clássico, um processo que descreve a gênese e modificação de alguns comportamentos com base nos efeitos binômio estímulo-resposta sobre o sistema nervoso central dos seres vivos. Até que ponto nossas escolhas são realmente nossas?

Também podemos extrapolar o debate que o livro traz para uma temática que vira e mexe está presente nos noticiários ou nas propagandas eleitorais de certos políticos de extrema direita: a redução da maioridade penal. Acompanhamos um Alex adolescente que apenas faz piorar seus comportamentos ultraviolentos na prisão, em contato com criminosos mais velhos e mais experientes. O próprio tratamento Ludovico nasce da necessidade de esvaziar as prisões, visto que já era evidente que as cadeias não recuperavam ninguém, pelo contrário, apenas pioravam. Esse debate já era feito há quase cinquenta anos atrás. Hoje temos observado que o Brasil é um dos países que possui uma das maiores populações carcerárias do mundo, principalmente de jovens negros e pobres, acompanhando os Estados Unidos, país onde as prisões são privadas e cada preso é uma possibilidade de lucrar em potencial. O livro nos ajuda a refletir sobre esse fato, se o encarceramento é uma solução para nos livrar da violência.

Como a obra é narrada pelo próprio Alex, senti muita repulsa e ojeriza em várias partes onde ele conta sobre os atos perpetrados nas noites violentas. Com a linguagem Nadsat, há uma certa veracidade nos relatos, que parecem estar sendo narrados por um adolescente de fato. Mas depois, quando ele passa pelo tratamento/tortura de ser obrigado a assistir filmes horríveis, ficar de pálpebras abertas, entre outras ações deploráveis, sentimos pena desse ser, que afinal, apesar de tudo, é apenas um adolescente. O autor joga com essa ambiguidade da vida, afinal, se o Alex é criminoso e tem que pagar pelos delitos que cometeu, a pessoa que tortura ele não seria igualmente um criminoso? Quem vigia os vigilantes? O autor também nos mostra que todas as pessoas podem ter um lado violento, quando escracha cenas de violência policial, aparelho repressor do Estado, e velhinhos aparentemente inocentes cometendo atos de ultraviolência por vingança.

O livro é um clássico, pois é atemporal e nos fornece material denso para posteriores debates. Possui uma adaptação para o cinema de 1972, com direção do Kubrick. Recomendo fortemente a leitura desse livro horrorshow, meus drugis!



domingo, 27 de outubro de 2019

NIX


Resenha
Livro: Nix
Autor: Nathan Hill
Ano: 2018
Número de páginas: 672
Editora: Intrínseca

Livro de estreia do autor Nathan Hill, confesso que fui fisgada pela capa: uma foto em preto e branco de jovens em um protesto com o título peculiar em letras garrafais e coloridas. O enredo é simples, na superfície e gira em torno de duas pessoas: Samuel Andresen-Anderson e sua mãe, Faye.

Samuel é um escritor frustrado, que leciona em uma universidade e nas horas vagas, se perde no jogo de computador Elf Scape. Odeia dar aula, pois seus alunos são desinteressados. Samuel foi abandonado pela mãe quando tinha onze anos, fato que o marcou para sempre. Samuel continuaria sua vida tediosa, se não fosse por um fato: sua mãe desaparecida, Faye, joga pedras no governador, um candidato a presidência de extrema direita. Samuel é contatado por um advogado que defende sua mãe, que pede para ele escrever uma carta a fim de ajuda-la no julgamento.

A história se passa em três temporalidades diferentes: 1960-68, final dos anos 80 e ano de 2011(tempo atual). O livro conta com capítulos curtos, que alternam entre os personagens principais e secundários. A maestria de Hill reside no fato de conectar todos esses personagens. Podemos ver como somos algozes ou oprimidos, em certa medida, ao longo da vida. Os personagens são humanos, dotados de contradições.

Na década de 60 acompanhamos a trajetória de Faye, sua infância e adolescência, e todos os fatores que contribuíram para que ela se tornasse quem é. Eu, particularmente, tive a Faye como personagem preferida e foi uma delícia acompanhar as aventuras de uma mulher que tentava romper com o que com as expectativas do que era esperado para as mulheres da época. Na década de 80 acompanhamos a infância de Samuel pouco antes de ser abandonado pela mãe. Também foi enriquecedor conhecer um pouco da sociedade da época com as ótimas descrições. No ano 2011, acompanhamos o drama de Samuel, intimado por seu editor a escrever um livro falando mal do “Terror do Governador”, sua mãe Faye, para conseguir pagar a dívida do adiantamento que recebeu pelo livro que nunca publicou, na sua juventude.

É interessante notar que Nix usa a individualidade dos personagens para falar da sociedade de cada época. Os jovens que protestavam na década de 60 e os jovens atuais, que navegam nas redes sociais. O autor trabalha com a hipótese, a meu ver, de que todos os jovens querem ser notados e amados, e usam os meios que dispõem para isso, seja protestando ou postando memes e textões nas redes sociais. Compartilho parcialmente essa visão com o autor, pois acredito que naquela época, a motivação poderia ser a mesma, porém, era necessária uma força de ação para coloca-lá em prática que não é necessária hoje nas redes sociais. Qualquer um pode ser considerado militante.

É um livro com personagens deliciosos e complexos, que emociona, diverte e leva à reflexão, de uma maneira acessível a todos os públicos. Para quem leu, fica o questionamento: você já foi/é o Nix de alguém? Recomendo a leitura!


domingo, 6 de outubro de 2019

A morte é legal


Resenha
Livro: A morte é legal
Autor: Jim Anotsu
Editora: Draco
Páginas: 320

Esse é o segundo livro que leio do autor brasileiro Jim Anotsu. O primeiro que li foi Rani e o Sino da divisão. Apesar de ter gostado dos dois livros, Rani conseguiu me agradar mais, por vários motivos, que não cabem aqui citar, visto que a resenha é do livro A morte é legal e não de Rani.

O livro é narrado em terceira pessoa e engloba o ponto de vista de quatro diferentes personagens : Andrew, Amber, Rayla e Astrophel. Essas quatro micro histórias se interconectam o tempo inteiro no livro. Andrew e Amber são irmãos , que perderam a mãe cedo, morta em decorrência de uma doença que tem o nome de um jogador de beisebol. Andrew é um menino de 19 anos, meio emo, recluso, que passa seu tempo lendo livros, escutando música e escrevendo seu romance, A Violinista de Fevereiro. É apaixonado por sua melhor amiga Briony e não tem coragem de se declarar. Tudo muda quando ele conhece uma Ive, a princesa do fim inevitável, filha mais nova da Morte. Ela propõe a ele que juntos procurem os nomes do gato, a criatura mais poderosa do universo e que concede dois desejos às pessoas que adivinharem seus nomes. Andrew aceita e começa sua aventura.

Amber , sua irmã, é melhor amiga de Jonas, um menino negro que sofre racismo na escola. Os dois se reúnem para fazer rap. A história deles é a parte mais realista do livro e foi uma das que mais gostei. Podemos acompanhar o crescimento e amizade dos dois jovens, que , além de passarem dificuldades inerentes à adolescência, enfrentam juntos as dores e agruras de ser o que se é.

Rayla é irmã mais velha de Ive, uma burocrata do mundo espiritual. No começo, podemos achar que ela é uma vilã sem motivações, que executa suas atividades apenas pelo prazer de matar ou punir, mas ao longo da narrativa vamos começando a entender suas reais razões.

Astrophel é casado com Stella, uma fada que escolheu deixar de ser criatura sobrenatural para se tornar humana e viver seu amor ao lado de seu marido. Só que Stella está envelhecendo e os dois buscam os nomes do gato a fim de conceder a vida eterna a ela. O passado deles é emocionante e seu amor que atravessa séculos é descrito em passagens muito bonitas.

Todas essas histórias estão conectadas e se passam na cidade de Desbrel, um lugar frio parecido com Londres. Confesso que fiquei com vontade de visitar essa cidade fictícia.  Os personagens não são maniqueístas. Bons ou ruins, são simplesmente como nós, humanos (ou criaturas de outro mundo), que tomam atitudes boas ou ruins dependendo da circunstância em que se encontram. O livro possui alguns erros gramaticais, algumas frases que não terminam , que poderiam ter sido revistos ao longo da edição.

Mais do que acompanhar a história de amor do personagem principal, Andrew, é um romance de fantasia que fala muito sobre o crescimento, primeiros amores, perdas, ato de perdoar. Mistura realidade e acontecimentos fantásticos de uma maneira deliciosa de ler para quem pretende fugir um pouco dessa literalidade em que nós encontramos. Por tudo isso, recomendo a leitura, tanto desse livro,  assim como de Rani e o Sino da divisão.

domingo, 15 de setembro de 2019

Úrsula


Resenha
Livro: Úrsula
Autora: Maria Firmina dos Reis
Ano da publicação: 1859

Vocês já ouviram falar de Maria Firmina dos Reis? Começo essa resenha com esse questionamento, visto que na minha época de escola nunca havia ouvido falar dessa incrível autora, mulher, negra, abolicionista. Ela é autora do primeiro livro escrito por uma mulher, Úrsula, com temática abolicionista. Pensem o que era naquela época uma mulher negra escrever um romance que trazia a história de negros e negras como pessoas, dotadas de características positivas, não animalizadas e além de tudo, questionando o sistema , patriarcal e escravocrata. Como diz a escritora Chimamanda Ngozi Adichie, é necessário que escutemos outras histórias. A história não é única.
Em sua superfície, o romance possui um enredo simples e folhetinesco: a heroína que dá nome à história, Úrsula, uma mulher branca e pobre, que vive com a mãe, uma senhora paralitica, se apaixona por Tancredo, um jovem bacharel , que corresponde seu amor. Porém, a jovem é objeto da paixão de seu tio, irmão de sua mãe Luisa B., um comendador cruel, que jura que sua sobrinha será sua esposa , custe o que custa. Luisa B. e a filha vivem desamparadas, numa sociedade que tratava as mulheres como meros objetos de apreciação masculina(algo mudou?). Porém, esse é o enredo da superfície.
Logo no começo do livro somos apresentados à Tulio, um jovem negro escravizado, cuja senhoria é a Luisa B. que salva Tancredo, pois esse havia caído de seu cavalo e ficado desacordado. Nessa parte, já ficamos conhecendo as virtudes de Tulio, jovem lindo, negro, escravizado, gentil, bondoso e grato. Ele é colocada em pé de igualdade com o homem branco , Tancredo , e ainda por cima salva sua vida. Tancredo, muito agradecido, devota-lhe amizade, que é correspondida, além de comprar sua carta de alforria.
Também ficamos conhecendo dois outros negros escravizados: mãe Susana e Antero. Um dos capítulos mais comoventes do romance é a narrativa de mãe Susana de como era sua vida no continente africano, com marido, filha e mãe e do dia mais triste de sua vida, a sua captura pelos europeus. Ela narra a liberdade que tinha em sua terra natal e que nunca possuiria no Brasil, mesmo que um dia fosse alforriada, pois sua vida ficara lá. Aqui Maria Firmina inova trazendo uma historicidade ao negro. Na maior parte das histórias da época, os negros são simplesmente escravos, anistóricos, animalizados, sem família nem passado. Aqui, Firmina traz a perspectiva da mulher negra escravizada, e seu passado. Ponto muito ousado do romance naquela época.
A estratégia da autora é louvável: com um enredo na superfície simples e atrativo, acabaria por atrair aquela parcela da população que lia folhetins: burgueses, além da estrutura típica dos romances românticos. Com isso, esperava traduzir os horrores da escravidão para essas pessoas dotadas de privilegio. Firmina ainda usa os valores cristão para rechaçar a escravidão, numa época em que a própria igreja utilizada a Bíblia para justificar o sistema escravocrata.
Os marginalizados em uma sociedade patriarcal e escravocrata, as mulheres e os negros, tem voz e vez nesse romance. Contam sua histórias, são dotadas de sentimentos, de passado, de perspectivas, existem para além de fazer figuração ao homem branco, representado pela figura do Comendador. A mensagem é clara: enquanto existisse o sistema escravocrata e patriarcal, a felicidade de mulheres, negros e marginalizados da sociedade não seria possível. Pergunto a vocês por que um romance dessa magnitude e importância não tem destaque maior nas escolas? Por que, apesar de passados alguns anos do fim da escravidão, vivemos ainda num país racista, que possui em suas instituições a legitimação para suas práticas. Um país que mata seus jovens negros pelas mãos do Estado, que segrega, que magoa, que marginaliza. É necessário que façamos um esforço de sempre perseguir outras histórias, contadas pelo outro, pela mulher, pelo negro, pelo indígena, ou seja, pelo oprimido, a fim de mudar essa homogeneização, pois somos e sempre seremos plurais. Recomendo a leitura.

2001- Uma odisseia no espaço

                                                               Resenha   Livro: 2001- Uma odisseia no espaço   Autor: Arthur ...